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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.65 no.3 São Paulo July 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000300023 

     

    NEUZA PARANHOS

     

    Aqui eu tenho um rio

     

    É ali, o terceiro sobradinho, tá vendo? O portão comprido, com as grades curvadas na parte debaixo pra caber o carro. Isso e a cobertura de eternit, tudo novidade, no meu tempo não tinha. Olhando daqui não parece uma gaiola? Sempre penso nisso quando vejo um sobradinho com essa caixola na frente. Coisa de paulistano, meu! Não é assim que a gente fala? Não é mais? Ah, também tanto faz, né, mano? Mas é que ali é minha casa, tenho uma foto pra comprovar. Essa aí sou eu atrás do portão. Uns três anos, louca pra sair. A cara zangada é que eu queria sair. E alguém não deixava, lógico. Eu? Eu rio assim mesmo, enviesado. Metade da boca entorta pra um lado. Mas não me faça desviar do assunto.

    A casa é minha porque foi a primeira que eu chamei de casa. Não carece tocar a campainha e dizer, nem fica bem. Quero atravessar a rua e olhar de perto. E caso alguém aparecer, aí eu digo. Assim é mais educado. Depois que perdi o emprego, o amor e o sossego dei pra isso, de andar por aí reparando no passado. O presente? O presente é isso mesmo. Ofuturo? O futuro não existe, meu filho. O meu amor? Esse morava no Mandaqui. Mas daí é outra história. Vam'atravessar a rua. Tá vendo, tá vendo? É essa minha casa. Que coisa, não me lembro de nada, também eu era tão criança. E com esse sujeito buzinando aí do lado não dá jeito. Não tenho concentração. Buzina curta, buzina longa, buzina curta-e-longa, buzina dos-infernos, buzina de-que-até-deus-duvida. Espia só, apareceu um homem na janela.

    Aí vem ele. Será que eu digo, será que eu digo? "Boa tarde, moço, o senhor sabia...." Ei, qué isso, qué isso! Ufa, fazia tempo não corria desse jeito. Ufa, deixa eu tomar fôlego. O que deu em você, garoto, viu assombração? Revólver? Jura? Não, não vi nada. Estava tão entretida em dizer a ele. Acertou o da buzina? Não quero olhar. Te aquieta, menino, vê só onde a gente veio parar. Aqui é a avenida Marginal, certo? Então... Aqui eu tenho um rio. Que alegria eu tinha de brincar na terra! Uma terra vermelha, úmida. Não sei se traziam de outro lugar pra drenar a várzea. Ou era terra nativa que eles tiravam do rio pra corrigir o curso. Ou você acha que o rio corre assim, reto, por um acaso? Você acha que Deus trabalha com régua? Não, não sou bíblia, ah, menino, não deixa eu me esquecer do que estava dizendo. Não me deixa esquecer, eu gostava tanto de brincar no barro.Quem visse podia pensar que a avenida que estavam abrindo era minha. Aí é que está, aí é que está. Não era a avenida, era o rio.Até alguém me descobrir e arrastar pra casa.Eu tinha ódio de viver trancada. Ai, que ódio! Eu não vejo o rio, ceguei pra ele. Olha, olha bem. Ponte, carros, pista, mato... Que é do rio? Fraco das ideias é você. Não quero saber seu nome. Por acaso eu disse o meu? Toma, pega a bolsa de uma vez, deixa eu ficar com a foto. Mas já vai indo? Eu não dei o dinheiro? Pra que tanta pressa? Vam'ali ver meu rio, eu tenho um rio. Daí quero ver você tomar de mim, isso eu quero ver!

     

    Olhos vazados

    (trecho inicial)

    Eu sei que seus olhos são vazados. Não que os veja, eu sei. E se o pudor deixasse, os representaria com ajuda de uma velha fotografia e um photoshop. Muita coisa mudou desde o seu fim e o meu começo, inclusive essa propriedade de facilmente ver o que apraz. Sinto, apesar do carinho que lhe tenho, eu, que sempre a vi ausente, não quero seus olhos vazados. Não é questão estética, é pudor. Por favor entenda e saiba também: encomendei uma visão. Uma que possa ser vista por olhos vazados. E diz respeito a coisas maravilhosas que não vimos e que nos habitam. Coisas de fechar os olhos e saber em silêncio.

    Então ouça: houve um tempo em que as árvores erguiam-se em caules pintados de fungos coloridos para dilatarem as copas nos limites entre a neblina e o sol. E um povo cambriano amendoava os olhos no rés da mata.

    Haviam herdado trilhas de animais paleozóicos e nelas passavam boa parte da vida. Caminhavam muito até chegar. O que só acontecia quando um lugar era bom, com água e caça. Então, incendiavam a mata e na clareira que se abria botavam roça. E se o dia estava muito quente, dava gosto ver tribos inteiras folgando na água. Que havia muita água, rios, riachos, lagoas alimentados por ferozes tempestades. Era assim o trivial dos Tupis, posso vê-los caminhando pela avenida Paulista, caçando no Pacaembu, entoando cantos monódicos ao redor de fogueiras, nas noites escuras que nunca existiram em Piratininga. Nem hoje, nem há cinquenta anos, quando você cessou de existir e eu rasguei o ventre de minha mãe. Tupi. Rezo as flautas sagradas que nunca existiram, Luzia. Comunguemos.

    Veja, homens apontando suas flechas no parque Siqueira Campos. E famílias inteiras refrescando-se no córrego Pacaembu. Há uma tapera na Consolação, à altura da Nestor Pestana, cuja tribo segue pela Serra do Mar para São Vicente, ainda ontem podiam ser vistos em Paranapiacaba. Nela restou um pajé proscrito, um mestiço. Quase morto de varíola, invocou um anhangá soprando a flauta sagrada. O som desceu pelo vale do Anhangabaú penetrando a mata. O anhangá acordou com fome e ouviu o sopro da flauta. Revelava o paradeiro da tribo adormecida no sopé da serra, para onde anhangá viajou no lombo da neblina fria. Lá chegando, sorveu as almas, que ficaram encantadas. Ali mesmo, passados uns séculos, anhangá construiu uma oca grande e dura, que cuspia fogo e fumaça colorida. E matava a neblina e os peixes e as nuvens e fazia a alegria da pequena curumim que passava o fim de semana em Santos com a família. Anos depois, já crescida, ela ouviu o choro dos índios sem alma sob a terra e as sirenes das fábricas. Aquilo tinha um apelo tão grande que ela precisou ouvir música. Então, ligou o rádio do carro e se pôs a sonhar.

    E assim começou minha história onde a sua parou, Luzia, preciso lhe contar da falta que você fez e de como carreguei sua ausência por todos estes anos.

     

    Neuza Paranhos é jornalista e tradutora e vive em São Paulo, onde participa de uma horta urbana comunitária e cuida de seu marido, além de muitos cães e gatos. Vez por outra, publica contos na mídia – entre outros meios, o jornal literário Rascunho e a versão online de Le Monde Diplomatique. Em 1998 publicou seu primeiro livro de contos, Av. Marginal, pela editora experimental ComArte (ECA/USP).