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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.65 no.4 São Paulo  2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000400018 

     

    Avaliação, comunicação e percepção de riscos associados a desastres naturais: uma contribuição aos estudos ambientais

    Gabriela Marques Di Giulio
    Bernardino Ribeiro Figueiredo
    Lúcia da Costa Ferreira

     

    O terremoto registrado na região de Áquila às 3h30 do dia 06 de abril de 2009 atingiu 6,3 na escala Richter. Além da cidade de Áquila, outros 20 municípios vizinhos foram afetados pelo abalo sísmico, que matou 308 indivíduos e feriu pelo menos 1.500. Entre 10 mil e 15 mil residências foram danificadas ou destruídas e cerca de 80 mil habitantes tiveram de deixar, temporariamente ou não, suas casas (1).

    Alexander (2010), ao fazer uma análise sobre a política de governo e a resposta dada ao desastre, argumenta que o terremoto foi precedido por anomalias em ondas de rádio, luzes de terremoto, irregularidades magnéticas, fluxos de urânio nas águas subterrâneas e mudanças ionosféricas. Todavia, nenhum desses eventos precursores teria permitido uma previsão em curto prazo para ser emitida ao público (2). O autor se refere à decisão da Comissão Nacional de Grandes Riscos em manifestar publicamente, após reunião realizada no dia 31 de março de 2009, que a ocorrência de um grande terremoto naquela região era improvável. A reunião teria sido motivada pelo grande número de pequenos terremotos que ocorreram perto de Áquila nas semanas anteriores e pela previsão de um cientista amador que, ao observar os eventos ocorridos, teria divulgado que um terremoto de grandes proporções ocorreria na região. Como argumenta o autor, depois do terremoto, foram iniciados procedimentos legais para determinar se teria havido alguma falha por parte da Comissão na sua manifestação.

    Neste artigo, os autores tomam esses fatos como ponto de partida para uma reflexão teórica sobre (i) os aspectos que circundam o processo de avaliação, comunicação e gerenciamento de risco; (ii) a necessidade de incorporar uma abordagem integrada de avaliação e caracterização do risco na educação dos profissionais envolvidos em estudos ambientais.

    RISCO: FENÔMENO REAL E CONSTRUÇÃO SOCIAL Nas avaliações técnicas de risco, nos estudos de engenharia e de geociências, por exemplo, o risco é entendido como um evento adverso, um atributo físico, com determinadas probabilidades objetivas de provocar danos, e pode ser estimado através de cálculos quantitativos de níveis de aceitabilidade que permitem estabelecer padrões através de diversos métodos, como predições estatísticas, estimação probabilística do risco e comparações de risco/benefício (3).

    Essa perspectiva, atrelada à abordagem do objetivismo natural científico sobre perigos (4), falha em reconhecer que os fatos científicos são situados e interpretados em contextos culturais e políticos.

    Para superar essas limitações, a abordagem do relativismo cultural sobre perigos enfatiza o aspecto contextual das respostas ao risco, argumentando que os fatores socioculturais são significativos na compreensão das resistências e controvérsias existentes e nas percepções que os indivíduos e grupos sociais têm sobre os riscos (5).

    Para compreender e lidar com os riscos atuais, Beck propõe a integração dessas duas abordagens, assumindo, assim, a ideia de que os riscos existem e são fenômenos reais, mas que a natureza e as causas dos riscos são conceitualizadas e enfrentadas diferentemente pelas sociedades contemporâneas ocidentais, quando comparadas com períodos anteriores.

    A abordagem proposta por Beck traz à tona os conflitos e contradições que marcam o processo de negociação sobre os riscos nas sociedades contemporâneas, inclusive os associados a desastres naturais - como o caso do terremoto de Áquila. Esses conflitos e controvérsias estão associados à própria produção de conhecimento, ainda fragmentada entre as disciplinas, enquanto os riscos são complexos; e ao fato de que a ciência, ao sustentar e encobrir a produção de perigos e ameaças, passa a ter sua autoridade questionada (4; 5). Evidencia também os elementos presentes no processo de avaliação de risco: complexidade, incerteza e ambiguidade. Estes elementos não estão relacionados às características intrínsecas dos perigos e dos riscos, mas ao estudo e à qualidade do conhecimento disponível sobre os riscos e perigos (6).

    O problema é que nem sempre esses elementos são de fato reconhecidos e tomados em consideração pelos próprios cientistas, pelos tomadores de decisão e pelo público em geral. Os eventos que precederam o terremoto em Áquila, a decisão da Comissão Nacional de Grandes Riscos em divulgar que, apesar daqueles acontecimentos, um terremoto de grandes proporções era improvável na região, os procedimentos legais para determinar se houve falha por parte da Comissão na sua manifestação, a cobrança por justiça e atribuição de culpa por parte do público e a própria sentença condenatória revelam a dificuldade intrínseca em lidar com essas três características básicas do próprio conhecimento científico.

    Considerar esses elementos e também os fatores que influenciam as percepções e atitudes coletivas e individuais frente aos riscos é fundamental para que os objetivos da avaliação de risco, que incluem a proteção à saúde e ao ambiente através da geração de informações e subsídios à regulação dos riscos e aos processos decisórios, possam ser alcançados.

    PERCEPÇÃO E COMUNICAÇÃO DE RISCO Um estudo realizado por pesquisadores italianos buscou identificar as percepções dos moradores de Áquila acerca dos riscos de ocorrência de terremotos na região e a capacidade de prevenção dos indivíduos e da comunidade local (7). O estudo envolveu a realização de uma pesquisa aplicada a 151 moradores feita logo após o terremoto e apontou que, antes de 2009, os moradores de Áquila consideravam improvável a ocorrência de um terremoto de grande magnitude na cidade e se mostravam excessivamente otimistas sobre a capacidade de suas casas resistirem a um evento como este - mesmo considerando que boa parte das casas antigas fora construída com materiais impróprios para suportar a ocorrência de um abalo sísmico de maior magnitude (7).

    Esse estudo sinaliza que os residentes locais tinham uma baixa percepção do risco, apesar de Áquila ter uma longa história sísmica e da própria sequência de leves abalos registrados na cidade desde dezembro de 2008. Indica também que a maioria não tinha um senso do imediatismo da ameaça durante esses pequenos abalos que precederam o choque principal (7).

    Os autores do estudo argumentam ainda que a baixa percepção dos moradores evidencia um discurso público ineficiente sobre perigos e riscos sísmicos. Para esses autores, uma comunicação simples e direta por parte das autoridades responsáveis pelo gerenciamento desses riscos sobre a impossibilidade de prever terremotos com precisão e sobre os riscos apresentados por edifícios antigos da cidade poderia ter provocado discussões na comunidade sobre estratégias de preparação e mitigação associadas à ocorrência de um evento futuro. Além disso, argumentam que deveria ter havido esforços para educar e treinar as gerações mais jovens sobre estratégias de gerenciamento de risco tanto nas escolas como em atividades organizadas pelas agências responsáveis pela gestão de risco e emergência, uma vez que estudos anteriores já indicavam uma "desatualização" do conhecimento local - em particular dos mais jovens - sobre a ocorrência de terremotos na região (7).

    As conclusões desse estudo constituem uma ponte interessante para uma breve reflexão sobre comunicação e percepção de risco.

    A literatura mostra que os primeiros esforços e ações relacionados à comunicação de risco estavam associados apenas à prática de convencer ou transmitir informações entre as partes interessadas sobre os riscos ao ambiente e à saúde humana, ações e políticas implementadas para gerenciar ou controlá-los. Essas estratégias estavam limitadas ao chamado modelo de déficit de conhecimento, no qual prevalece a visão de que o "público leigo" é ignorante sobre ciência ambiental e saúde; é irracional nas suas respostas aos riscos e, portanto, deve ser mais bem informado e convertido para uma visão mais objetiva (8). Esse modelo, ainda adotado em algumas situações como mostram por exemplo estudos conduzidos no Brasil (9), apresenta diversas limitações, especialmente porque falha em considerar como as mensagens são compreendidas pelo receptor, subestima o contexto em que a comunicação ocorre, não engaja o público nos debates sobre riscos e não considera suas perspectivas no processo de tomada de decisão.

    Hoje, diversos autores defendem uma comunicação de risco participativa, calcada na promoção de um diálogo sensível às necessidades da comunidade que vivencia situações de riscos, na integração do público no processo de gerenciamento do risco e no estabelecimento de uma relação de confiança entre público, pesquisadores e autoridades (6; 10; 11).

    Indo além das estratégias de comunicação, o diálogo entre quem produz conhecimento científico e quem usa esse conhecimento para tomar decisões passa também pela compreensão de como os indivíduos percebem os riscos.

    O termo percepção de risco denota o processamento de sinais físicos e/ou informações sobre eventos ou atividades potencialmente perigosos e a formação de julgamento sobre a seriedade, probabilidade e aceitabilidade de um respectivo evento ou atividade (6).

    Entre os fatores sociais e culturais que influenciam a percepção de risco estão, por exemplo, os julgamentos estéticos, variáveis contextuais, imagens semânticas, valores, efeitos da comunicação (incluindo a comunicação feita por autoridades e especialistas e as informações divulgadas pela mídia) e confiança nas organizações e instituições envolvidas nos seus diversos níveis na regulação, análise e gerenciamento do risco (6).

    A estratégia da Comissão Nacional de Grandes Riscos em assegurar aos moradores que a ocorrência de um grande terremoto era improvável certamente teve efeitos nas percepções de risco dos moradores e nas suas atitudes, como: (i) percepções individuais e coletivas mais baixas sobre o risco de ocorrência de um terremoto de maior magnitude (reforçadas pelas percepções que os indivíduos já tinham mesmo antes de receberem essa informação); (ii) resistência dos moradores em saírem de suas residências alegando que a informação recebida era tranquilizadora; (iii) falta de preparo dos moradores para enfrentarem uma situação de desastre (também associada às falhas de comunicação e de esforços de educação e treinamento, por parte das autoridades responsáveis); (iv) a relação de desconfiança instaurada, a legitimidade da Comissão posta em cheque, a necessidade de atribuição de culpa e responsabilidade pelo ocorrido e pela possível falta de preparo dos moradores em virtude da informação divulgada anteriormente.

    Esses efeitos podem ser analisados à luz da abordagem da amplificação social do risco (6), que assume que a percepção de risco é, sobretudo, determinada pela forma como o risco é comunicado através da mídia e de outras fontes - incluindo cientistas e autoridades. A análise de como essas informações são comunicadas pode explicar, assim, a amplificação ou a atenuação das preocupações relacionadas a determinado risco.

    Neste caso o privilégio do acesso à informação (tranquilizadora) fornecida pela Comissão Nacional de Grandes Riscos pode ter contribuído para a subestimação do risco e diminuição das preocupações relacionadas a esse risco. Essa atenuação, os prejuízos advindos com o terremoto, que vão muito além dos prejuízos ao ambiente e à saúde humana, e a própria pressão pública pela informação incorreta divulgada podem ser algumas das explicações possíveis para que fossem iniciados procedimentos legais para determinar se houve alguma falha por parte da Comissão no seu trabalho e no comunicado feito.

    POR UMA (NOVA) DISCIPLINA NOS CURSOS AMBIENTAIS Ao refletir sobre o caso italiano é possível pensar também em estudos conduzidos no Brasil sobre situações de risco associadas à exposição ambiental e humana ao chumbo (9) e a mudanças ambientais e climáticas (12). Em comum, esses estudos mostram que a falta de uma compreensão sobre como os indivíduos percebem os riscos aos quais estão potencialmente expostos e as perspectivas e estratégias ainda limitadas de comunicação, avaliação e gerenciamento de risco, que reconhece aos técnicos a propriedade da verdade e o dever de encontrar as soluções mais corretas para uma população tida como cientificamente limitada e emocionalmente vulnerável (13), interferem diretamente no diálogo e na própria relação estabelecidos entre os atores sociais. Esses estudos revelam ainda a necessidade de incorporar uma abordagem integrada de avaliação e caracterização do risco na educação dos profissionais envolvidos em estudos ambientais.

    Neste artigo defende-se a proposta de criação de uma disciplina que contemple abordagens teóricas e metodológicas de avaliação, percepção e comunicação de risco nos cursos ambientais e de geociências, o que contribuiria para a formação dos profissionais que têm de lidar com o papel da informação e dos demais elementos que moldam as percepções de risco.

    Como Liverman e Jaramillo (2011) argumentam, poucos cientistas - em particular os da área de geociências - estão aptos a lidar com questões da área de comunicação, apesar da sua importância. A educação nas "geociências convencionais", como reconhecem esses autores, ainda prepara mal o cientista para a comunicação com o público e com a mídia.

    Essa disciplina poderia ajudar a melhor preparar esses profissionais a lidar com essa e outras atribuições cada vez mais presentes e urgentes em suas práticas cotidianas e que certamente extrapolam os laboratórios e gabinetes de pesquisa. Dentro de uma perspectiva interdisciplinar, essa disciplina buscaria incorporar: (i) a ampliação do debate teórico sobre risco; ii) o entendimento de que estudos e estratégias de enfrentamento de situações de risco requerem abordagens que incorporem dimensões subjetivas e objetivas; iii) a superação da perspectiva limitada de avaliação do risco; iv) a discussão sobre métodos para aferir percepções de risco e sobre estratégias de comunicação de risco; v) a compreensão de que as decisões em situações de risco, por sua complexidade, controvérsias, ambiguidades e incertezas, não podem ser baseadas apenas no conhecimento técnico e devem incluir a participação das comunidades afetadas.

    Esse último item passa pela discussão das possibilidades, desafios e limitações da prática de um processo de produção de conhecimento mais participativo, no qual a ciência esteja aberta ao debate, as fronteiras entre especialistas e não especialistas sejam reduzidas e a legitimidade da decisão venha do exercício do debate aberto (14). Como argumenta Lindell (2011), envolver as comunidades locais no processo de avaliação, gerenciamento e mitigação dos riscos é importante porque elas têm importantes informações sobre o ambiente em que vivem e suas atitudes e percepções são fundamentais para identificar prioridades e medidas que podem ser aceitáveis e que podem contribuir para melhorar a qualidade de vida das pessoas e promover uma convivência mais sustentável entre elas e o ambiente natural.

     

    Gabriela Marques Di Giulio é jornalista e doutora em ambiente e sociedade, docente do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP.)
    Bernardino Ribeiro Figueiredo é geólogo e doutor em geologia, professor titular do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
    Lúcia da Costa Ferreira é ecóloga e doutora em ciências sociais, pesquisadora do Nepam-Unicamp.

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Liel, A.B.; Eeri, M.; Corotis, R.B.; Camata, G.; Sutton, J.; Holtzman, R.; Spacone, E. "Perceptions of decision-making roles and priorities affecting rebuilding after disaster: the example of L'Aquila, Italy. 2012". Disponível em: http://bechtel.colorado.edu/~liel/publications_files/Lieletal_PerspectivesLAquila_Text_withFigures.pdf, acessado em 23/01/2013.

    2. Alexander, D.E. "The L'Aquila Earthquake of 6 April 2009 and Italian Government Policy on Disaster Response". Journal of Natural Resources Policy Research, vol. 2, nº. 4, p. 325-342, 2010.

    3. Guivant, J.S. "A trajetória das análises de risco: da periferia ao centro da teoria social". Revista Brasileira de Informações Bibliográficas, Anpocs, 46, p. 3-38. 1998.

    4. Beck,U. Ecological politics in an age of risk. Cambridge: Polity Press, 1995.

    5. Zinn, J.O. (ed.). Social theories of risk and uncertainty - an introduction. Oxford: Blackwell Publishing, 2008.

    6. Renn, O. Risk governance: coping with uncertainty in a complex world. London: Earthscan, 2008.

    7. Marincioni, F.; Appiotti, F.; Ferretti, M.; Antinori, C.; Melonaro, P.; Pusceddu, A.; Oreficini-Rosib, R. "Perception and communication of seismic risk: The 6 April 2009 L'Aquila Earthqualie case study". Earthquake Spectra, vol. 28, nº.1, p. 159- 183, 2009.

    8. Owens, S. "Engaging the public: information and deliberation in environmental policy". Environment and Planning A, nº 32, p. 1141-1148, 2000.

    9. Di Giulio, G.M. Risco, ambiente e saúde: um debate sobre comunicação e governança do risco em áreas contaminadas. São Paulo: Annablume, 2012.

    10. Boholm, A. Editorial: "New perspectives on risk communication: uncertainty in a complex society". Journal of Risk Research, vol. 11, nº 1-2, p. 1-3, 2008.

    11. Lundgren, R.; Mcmakin, A. Risk communication: a handbook for communicating environmental, safety and health risks. Ohio: Battelle Press, 2000.

    12. Di Giulio, G.M.; Viglio, J.E.; Ferreira, L.C. "Building dialogue between 'those who make science' and 'those who use science to make decisions': a Brazilian case study In: Planet Under Pressure, Londres, 2012.

    13. Lima, M.L. "Ciência e saber comum: introdução". In: Gonçalves, M.E. (org). Cultura científica e participação pública. Celta Editora, Oeiras, p. 103-107, 2000.

    14. Felt, U.; Wynne, B. "Science and governance: taking European knowledge society", 2007.