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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.3 São Paulo Sept. 2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000300003 

    BRASIL
    INTERNET

     

    Após aprovação, Marco Civil enfrenta o desafio da regulamentação

     

     

    Sarah Costa Schmidt

     

     

    No dia 23 de junho deste ano entrou em vigor o Marco Civil da internet brasileira. A Lei nº 12.965, que definiu o Marco, foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff (PT) no dia 23 de abril, na abertura do evento NetMundial, em São Paulo. Ela estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no país. Após a aprovação da Lei, agora o Marco enfrenta uma nova batalha: a fase de regulamentação. "Essa é uma etapa com a qual a sociedade precisa se preocupar. O processo não terminou", alerta Everton Rodrigues, coordenador de comunicação do NIC.br, entidade civil que implementa decisões e projetos do Comitê Gestor da Internet no Brasil.

    Primeiro projeto colocado sob consulta pública on line pelo governo federal, o Marco recebeu mais de duas mil contribuições da sociedade civil, feitas por meio da plataforma culturadigital.br, em duas rodadas de debates. Na próxima etapa, a ideia é que o processo não seja diferente: em pronunciamento realizado em maio, durante a assinatura do decreto que instituiu o Plano Nacional da Participação Social (PNPS), Dilma afirmou que a regulamentação do Marco Civil também será feita com participação da população via internet. Mas ainda não há definição de quando e como isso ocorrerá. "Como o Marco é uma lei federal, ela é regulamentada por meio de decreto presidencial. O problema é que não há um prazo para que isso ocorra. Tivemos muitos casos no Brasil de leis aprovadas que ainda não foram regulamentadas", explica Fernanda Gurgel, professora do curso de direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do Centro Universitário Padre Anchieta.

     

    PRINCÍPIOS, DIREITOS, DEVERES

    Apesar de ter gerado muitas controvérsias e de sofrer alterações para que fosse aprovado, o texto do Marco Civil reforça pontos considerados fundamentais por ativistas da web: neutralidade da rede, privacidade do usuário, liberdade de expressão e guarda e uso de dados. Considerada a "constituição da internet", a Lei traça princípios que norteiam o uso da rede em território nacional. As primeiras discussões sobre a necessidade do marco regulatório surgiram em 2007. Mas, foi apenas em 2013, depois das denúncias de que a National Security Agency (NSA), dos Estados Unidos, realizava espionagem digital de governos,inclusive do brasileiro, que o projeto, cujo relator foi o deputado Alessandro Molon (PT-RJ), ganhou destaque e foi colocado em regime de urgência na Câmara dos Deputados.

     

     

    A neutralidade de rede, um dos pontos que mais gerou embate na Câmara, está especificada no capítulo III, seção I da Lei. De acordo com o art. 9º: "O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação". Isso quer dizer, em princípio, que as operadoras de internet não podem filtrar o acesso do usuário pelo conteúdo: tudo deve ser tratado da mesma forma, com isonomia. Inclusive em termos comerciais.

    O argumento para essa garantia é a de que, sem ela, as operadoras de serviço de internet poderiam vender pacotes que restringiriam o acesso do usuário a certos conteúdos: um tipo de assinatura garantiria acesso apenas a e-mails e redes sociais; outra, mais cara, garantiria também acesso a serviços de vídeos, streaming, em um esquema parecido com o que ocorre hoje com a programação das TVs por assinatura. Para ativistas da web, essa possibilidade vai contra o princípio de uma rede livre. Esse tópico gerou discussões e desacordos com empresas de telecomunicações. "Por isso, o momento da regulamentação da Lei ainda será um desafio. É preciso ficar atento aos lobbies e não deixar a pressão social morrer", afirma Vinicius Santos, pesquisador do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que pesquisa sobre neutralidade da rede no Brasil. Outro ponto apontado como um dos eixos do Marco Civil é a questão da privacidade, guarda e uso de dados do usuário. Ficou estabelecido que a privacidade é um direito e uma condição para "o pleno exercício do direito de acesso à internet". Ou seja, o usuário tem direito à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, "sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial". Além disso, está previsto que as operadoras não podem fornecer "a terceiros seus dados pessoais, inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações de internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e informado ou nas hipóteses previstas em lei".

     

    TODO MUNDO É SUSPEITO?

    Ao mesmo tempo em que reforça tais garantias em relação à privacidade dos dados dos usuários, o Marco Civil estabelece, em seu 15º artigo, que: "O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de seis meses, nos termos do regulamento". O argumento para essa exigência é que, se alguém comete crimes por meio da rede, como a promoção da pedofilia, por exemplo, há a possibilidade de que autoridades, mediante autorização judicial, peçam à operadora da conexão o acesso aos dados desse usuário.

    Mas a obrigação de guarda de registros gerou controvérsias entre os idealizadores do Marco. "Você acaba colocando alguém como suspeito antes mesmo que ele cometa um crime. É como tratar todos os usuários como potenciais criminosos", avalia Santos.

    Em artigo publicado em maio deste ano na revista eletrônica ComCiência, Sérgio Amadeu da Silveira, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e ativista da liberdade na rede, criticou a questão: "O Marco Civil, ao obrigar - ao invés de restringir - a guarda de logs de aplicação (registros de acesso a aplicações), está ampliando e legalizando esse mercado de observação e análise de nossas vidas que é feito pela redução crescente da privacidade e da intimidade dos cidadãos". Mesmo assim, Silveira acredita que o mercado de vigilância será expandido. "Por isso, é preciso que a regulamentação do artigo 15 seja realizada de modo transparente pelo governo, tal como foi elaborado o projeto original do Marco Civil", defende.