SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.67 issue1 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000100019 

    CULTURA

     

    Artes Plásticas: Aleijadinho - 200 anos de encantamento

     

     

    "Gênio virgem, puro e inocente, artífice exemplar e original, um dos fundadores de uma tradição artística nacional", assim Mário de Andrade descreveu Aleijadinho, no estudo "A arte religiosa no Brasil", publicado na Revista do Brasil, em 1920, consagrando Antônio Francisco Lisboa, cuja morte completou 200 anos em novembro passado, como um dos símbolos da arte e da identidade brasileiras. As comemorações da data contaram uma série de eventos, como seminários e exposições, em todo o país. "Comemorações em torno das efemérides são sempre positivas. Diversas obras foram publicadas e as discussões sobre a mitologia relacionada ao Aleijadinho e ao Barroco se reacenderam um pouco. Isso faz com que muitas pessoas, sobretudo jovens, que ainda não tinham tido contato com essas questões, comecem a se interessar por elas", afirma a historiadora e professora do Instituto de Filosofia Artes e Cultura, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Guiomar de Grammont.

    Entrar em uma das inúmeras igrejas de Ouro Preto, uma das cidades históricas de Minas Gerais, é penetrar em outro mundo, um universo dramático de devoção religiosa. Segundo Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e atual secretário de Cultura de Minas Gerais, no século XVIII, Ouro Preto é um espaço que teatraliza a vida individual e coletiva sob a égide da religiosidade, cujos símbolos se espalham por toda a cidade, dentro e fora das igrejas. Aleijadinho está imerso nessa cultura, ele é produto e também agente dessa religiosidade. Um tipo de fé que, naquele momento, busca criar uma experiência com o divino por meio dos sentidos. Daí a importância das imagens e dos cenários criados em cada igreja.

     

     

    Teatro de Madeira e Pedra-Sabão Escultor, entalhador e arquiteto, Aleijadinho é um dos mestres que ajudou a construir os cenários do barroco mineiro dos quais o conjunto arquitetônico do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas (há 70 quilômetros de Belo Horizonte) é um dos exemplos mais impressionantes. Reconhecido pela Unesco como Patrimônio Mundial em 1985, ele é composto por seis capelas que abrigam 64 peças de madeira representando o calvário de Cristo e se completa no santuário principal em cujas escadarias estão os 12 profetas em pedra-sabão (veja box 1).

    Se a arte de Aleijadinho é fruto do seu tempo, o artista Aleijadinho é uma criação mais recente. No século XVIII e início do século XIX, época em que ele viveu, não havia noções de artista e autoria. "Nós é que as aplicamos anacronicamente ao passado, supondo no Aleijadinho motivações semelhantes às dos artistas contemporâneos", lembra Guiomar de Grammont, que também é autora do livro Aleijadinho e o aeroplano (2008). Segundo a historiadora, Antônio Francisco Lisboa nem sempre foi visto como o artista romântico que ficou consagrado na história. "O mito do Aleijadinho como o artista-herói só começa a ser construído a partir do século XIX e sua supervalorização acontece no século XX", afirma. "Para atender encomendas das irmandades ele trabalhava com dificuldades semelhantes às dos outros artífices do seu tempo. Não tinha preocupação com originalidade ou estilo e sequer assinava suas obras", explica. Era comum ainda que trabalhasse em conjunto com outros artífices em seu ateliê, por isso, muitas peças atribuídas a ele são, na verdade, fruto de uma criação coletiva.

    Jogo de espelhos De acordo com o pesquisador do curso superior em restauro, do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), Alexandre Mascarenhas, a mitificação de Aleijadinho deve-se, em grande parte, ao projeto de um grupo de intelectuais, liderados por Mário de Andrade, que busca encontrar referências artísticas genuinamente brasileiras. Assim, em princípios do século XX, o escultor mineiro e a arte colonial de modo geral, são eleitos como os maiores expoentes da identidade nacional. "O maior problema da mitificação do Aleijadinho é que inúmeros artistas foram esquecidos ou deixaram de ser estudados, devido ao agigantamento dessa figura. É um jogo de espelhos, é como se não quiséssemos conhecer nada, apenas nos reconhecer no século XVIII. Tentar realizar a crítica dessas operações é um exercício do melhor espírito científico", acredita Grammont. O estudo de Aleijadinho e de sua obra exigem uma leitura interdisciplinar, acredita Lucienne Maria de Almeida Elias, pesquisadora do curso de conservação e restauração de bens culturais móveis, da Escola de Belas Artes, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). As questões relacionadas à autoria, por exemplo, não podem ser guiadas apenas por um parâmetro. "Por exemplo, as indagações quanto aos olhos amendoados. Será que existe um padrão, uma maneira peculiar na fatura do escultor, será que temos obras que não se enquadram a essa característica e são de auto-ria ou atribuídas a Aleijadinho?", questiona a pesquisadora.

    Novas descobertas sobre a obra de Aleijadinho podem surgir a partir do trabalho da comissão especial de assessoramento sobre a obra de Antônio Francisco Lisboa, criada em agosto de 2014, no contexto das comemorações do bicentenário do escultor, pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). De acordo com Elias, que integra a comissão, a ideia é fazer um levantamento e revisão de fontes bibliográficas e documentos para elaborar critérios de identificação da obra arquitetônica, ornamental e escultórica de Aleijadinho. "Queremos criar um catálogo geral da obra, avaliar seu estado de conservação, as intervenções realizadas, registrar até que ponto os materiais originais estão presentes e se ocorreram acréscimos ou modificações", explica.

    Arte da Reprodução Se, por um lado, a mitificação de Aleijadinho produziu algumas distorções, por outro, sua transformação em artista-herói ajudou a preservar e a disseminar sua obra ao longo do tempo. Isso é especialmente importante no caso do barroco mineiro já que grande parte das esculturas e dos projetos arquitetônicos atribuídos a Aleijadinho encontra-se em fachadas e adros de templos religiosos, em áreas externas. "Trata-se de um patrimônio exposto à ação das intempéries, à poluição, à falta de manutenção adequada e mesmo ao vandalismo", explica Alexandre Mascarenhas. "Entre 1938 e 1969, a pedido do recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), dezenas de réplicas de gesso e algumas em cimento de esculturas de Aleijadinho foram confeccionadas e distribuídas por diversas instituições de caráter educacional e museológico dentro e fora do Brasil", conta Mascarenhas. O objetivo do então presidente do Sphan, Rodrigo Melo Franco de Andrade, juntamente com Mário de Andrade, era criar um museu com réplicas que permitisse o estudo e a divulgação da cultura brasileira no Brasil e no mundo. Segundo Mascarenhas, o museu nunca saiu do papel, mas as réplicas - 113 já catalogadas - tornaram-se instrumentos de proteção e perpetuação da obra de Aleijadinho e hoje também são alvo de ações de catalogação e de preservação.

     


    Clique para ampliar

     

     

     

     

     

    Patrícia Mariuzzo