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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.70 no.2 São Paulo abr./jun. 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000200018 

    CULTURA
    PROSA

     

    Homem-Número

     

     

    Antonio Salvador

    Autor do romance A condessa de Picaçurova e do livro sobre direitos culturais Três vinténs para a cultura, publicados, respectivamente, em 2012 e 2014. No teatro, estreou com o espetáculo Experimento com bola de demolição sobre objetos de uso diário, em 2016, com encenação do Coletivo de Areia. Homem-número, do qual foi extraído o trecho acima, é um romance inédito. Paralelamente à atividade artística, dedica-se à carreira acadêmica na Humboldt-Universität zu Berlin. Mora na Alemanha

     

     

    Talvez por causa das gotas, a percepção dele estivesse deturpada, pois, bem não entrou no cartório, percebeu um movimento torto por detrás das mesas e gaveteiros. Era como se já o esperassem ali... Ficou excepcionalmente alerta. Alguém, que arrastava uma escada, parou. Um tossido acolá, um ziguezague entre pilhas, e a oficiala veio saber em que poderia ser útil. Regina esteve prestes a perguntar por que é que todos olhavam para ele, mas conteve-se. A pergunta teria sido um disparate! O sujeito entra numa repartição pública aos sonoros gemidos, cambaleando, quem é que não vai notar isso? Estou aqui... algo rodopiou em sua cabeça; ele soltou um suspiro e recobrou a fala. Vinha registrar o óbito da amada filhinha. Se era obrigatório entremostrar alguma sacudidela de alma, a oficiala furtou-se a esse dever. Solicitou apenas o documento de identidade e o atestado de óbito. Ele entregou o papel e apressou-se em fazer a observação de que no atestado não constava ainda o nome da criança - ninguém havia sequer perguntado pelo nome -, fora tudo tão às pressas, talvez o hospital tenha sido negligente e... A sobrancelha direita da oficiala saiu da órbita do olho. O nome não constava do atestado como não iria constar de parte alguma. Ela não tem direito a nome. O quase pai soltou um quase grito Como é que é? Depois, recompondo-se Como não tem direito a nome? Que pessoa humana pode ser tratada assim? A funcionária do cartório foi lacônica Um natimorto, senhor.

    Sequer no livro usual de óbitos a filha de Regina poderia figurar. Para tais casos, o assento era lavrado num livrinho secundário, no qual a natimorta receberia, não um nome, mas um número de identificação. Um número?De jeito nenhum!, O registro éobrigatório, senhor, Eu não vim registrar um número, vim registrar uma pessoa!, O senhor veio registrar um natimorto, E onde é que está escrito que uma pessoa deixa de ser pessoa porque nasceu sem vida?, Não deixa de ser pessoa, só não terá direito a nome!, 'Só', você diz! 'Só não terá direito a nome'! Você acha pouco um nome?, Senhor, é a lei quem acha! Eu, por mim, escreveria aqui qualquer coisa... Nesse momento, entrou pela porta o chefe do cartório que ouvira apenas a palavra "lei" e, sem olhar para Regina, perguntou do que se tratava. A oficiala, que mostrara até então aquele desapego quanto a questões de nome, não deixou de se dirigir ao chefe pelo patronímico precedido do tratamento de "doutor". Antes porém, cuidou em expressar uma tal amabilidade de que qualquer um a teria julgado incapaz Este senhor deseja fazer o registro de óbito da filhinha. Infelizmente, a criança nasceu morta e..., Qual é a dificuldade? perguntou o chefe Está aí o livro! É só registrar! O chefe era um sujeito consciente das próprias atribuições e empregava cada uma delas no tom de voz que era vítreo e positivista. Sim, a funcionária havia tentado explicar que há um livro auxiliar para tais casos, mas o homem insistia no assento de um nome. Não, não, não! o chefe sacudiu a cabeça e ainda fez assim com o indicador Neste livro só há números. Livro com nome éoutra categoria. Caso o senhor desconheça a lei... Regina desferiu um soco contra o balcão e deu dois berros Pro caralho, a lei!Pro caralho, a lei!

    É bem verdade que esses dois palavrões na mesma sentença, lei e..., tinham algo de perturbador e até tautológico, mas definem o estado de espírito de Regina ao sair do tal cartório. Não fez o registro. Entrou no carro suando frio, ofegante, as mãos tremiam - era a raiva ou, talvez, até... era a raiva, só podia ser a raiva! Quase não articulava palavra e 5 demorou para compreender minimamente o sucedido. Depreendendo da fala bêbada e entrecortada de Regina que quiseram registrar a filha como um reles número, o assombro tomou os olhos de 5 como Regina nunca vira; nesse instante, ele teve vontade de chorar, pois finalmente produzira alguma emoção naquela pessoa. Também muito emocionado, mediunizou a eloquência. Não lhe escapava do instinto o dever de dar um nome à filhinha. Seria impensável sujeitá-la à impessoalidade do número! Iria aos tribunais, desceria às profundas do inferno, mas o nome era imprescindível! A realidade está no nome. O nome é que põe a existência. É nele que se origina a pessoa do filho e, de quebra, também a pessoa do pai! Uma pessoa é o conjunto de seus ideais... Sem dúvida, alguém terá proferido essa máxima em qualquer parte, no entanto, Regina estava tão enfiado nas próprias brechas que teve certeza ser ele o primeiro a chegar a esse brilhante raciocínio... Pessoa: conjunto de ideais. Figurando o ideal entre números avulsos, o próprio idealista não passaria de um número. O número é apenas uma contagem abstrata - e mais: a contagem de coisas sem nome é um vazio, e tem mais outra: a contagem do vazio é uma farsa, um insulto, o inventário das não-coisas. Era como se, além de tudo, o ideal de Regina viesse a ser apenas mais um número registrado num livrinho secundário... Número éo caralho!

    5 nunca o vira naquele estado e arregalava mais e mais os olhos à cada menção de que a filha esteve prestes a ser contabilizada como um reles número. Por fim, a esposa expeliu todo o seu assombro Regina! Desde quando isso tem importância, Regina? Como se lhe tivessem amputado as duas mãos, ele parou de gesticular. Nome, número, é tudo escrita! Dá tudo no mesmo!Por alguma razão, a assertiva dita com tanta ênfase foi-lhe mais persuasiva do que qualquer argumento. Talvez ele estivesse só cansado de pensar... Quem sabe não estivesse exagerando? Teria 5 razão? Assim como uma pessoa não deixa de ser pessoa porque nasceu morta, também não deixará de ser pessoa porque não tem nome. O que ainda quer entre nós essa doutrina nominalista? Número também é marca gráfica no papel, exatamente como o são as letras! E outra, se o registro é feito no livro principal ou no secundário, eis aí uma questão mais secundária do que o livro secundário! Não afeta em nada o fato de que a filhinha, o doce pecado de sua carne, estava morta, e somente isso, morta. Sem dúvida, já estaria contabilizada em livros superiores; isso basta! Com efeito, frente a essa realidade chocante e viva, nada podia ter qualquer importância... Vamos? 5 prontificava-se a acompanhá-lo de volta ao cartório. Definitivamente, ele não estava em condições de tomar a dianteira de coisa alguma. Antes de sair do carro, Regina ainda hesitou um pouco, mas, ao final, cedeu sacudindo a cabeça numa tristeza terrível Estou é farto de nada ter importância...

    Voltou ao prédio, tomou o elevador, dirigiu-se à sala, pegou a senha, cumpriu o que lhe era demandado. A oficiala recebeu o emolumento e fez o registro. 5 assinou o protocolo e pediu para abrirem o livro sobre o balcão, a fim de conferir se estava tudo certinho. Depois, virando-se para Regina, rematou As formalidades são o de menos. Sem querer, ele bateu o olho na página, e mais especificamente no registro da filha. Ao ver o resultado, o número 6, essa espiral macabra, defeituosa, que começa sem aviso, gira e colide dentro de si mesma, Regina entrou em pânico. O número era realmente um número. No painel, o guichê chamou a última senha. O horário de atendimento afixado. O valor do serviço. A sala. O andar. Sem equilíbrio, Regina fugiu pela escada de incêndio. Nenhuma estatística poderá dar conta do montante de sensações que o fizeram cambetear como uma criança ao descer do gira-gira, à espera da realocação dos sentidos que foram centrifugados para as quinas da cabeça. Aquela coleção de números desmoronou prédio afora e levou Regina de rojos. 5 encontrou-o caído na calçada, cercado por meia-dúzia de transeuntes. Era uma convulsão.