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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.74 no.1 São Paulo jan./mar. 2022

    http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20220016 

    OPINIÃO

     

    Liberdade para Quem? Duzentos anos de disputas

     

     

    Thiago Krause

    Professor de história na Unirio e autor, com Rodrigo Goyena Soares, de "Império em Disputa: Coroa, Oligarquia e Povo na Formação do Estado Brasileiro (1823- 1870)" (FGV Editora, 2022), do qual este artigo foi adaptado

     

     

    O período de independência não se reveste no Brasil do mesmo caráter seminal (poderíamos dizer até totêmico) que possui nos Estados Unidos da América: as imensas transformações institucionais desde a Proclamação da República em 1889 e a combinação de fracasso educacional e complexo de vira-lata ajudam a entender esta diferença. Nossa identidade nacional foi frequentemente definida por nossas potencialidades e pela comparação com o exterior que ressalta nossas deficiências. Esse desprendimento tem seus elementos positivos - afinal, crer em Pais Fundadores de sabedoria inigualável é bastante infantil - mas favorece uma visão a-histórica que ignora as múltiplas possibilidades e debates que marcaram a trajetória do país. Talvez ainda mais importante, ignorar o tema arrisca lançá-lo no colo da extrema-direita no poder, que recolhe sua visão do passado na lata de lixo da historiografia.

    O senso comum enfatiza a continuidade no processo de independência, como convém a um país supostamente avesso a rupturas: a colônia de exploração torna-se um império escravista, governado pela mesma dinastia da metrópole e subordinado a interesses econômicos estrangeiros. Como muitas ideias herdadas e repetidas sem reflexão, seu problema é mais a superficialidade simplificadora do que propriamente a incorreção. Apesar dos constrangimentos impostos pelo binômio formado pelas elites senhoriais e pela dependência estatal das rendas derivadas da produção escravista, o destino do Brasil não estava dado em 1822 - ou em momento algum, pois a história é sempre o resultado incerto de múltiplos embates.

    Longe de ser apenas um divórcio relativamente pacífico1 ou mesmo "uma guerra civil de portugueses",2 a independência do Brasil inseriu-se nos estertores da Era das Revoluções. Assim, liberdade e soberania popular foram conceitos tão centrais no Brasil de 1822 como nos Estados Unidos de 1776 e na França de 1789. Como escreveu o senhor de engenho baiano Miguel Calmon, "o amor da liberdade sempre é mais ardente nos países onde há escravos [...]; aqueles que vivem entre escravos olham para a liberdade não só como uma fruição comum a todos, mas como uma espécie de privilégio e de hierarquia".3 Tratava-se, portanto, apenas da liberdade do senhor.

    O progresso não foi obtido graças a burocratas ilustrados ou governantes beneméritos, mas da ação social que transformou possibilidades abertas por mudanças estruturais em realidade.

    Entretanto, a experiência de opressão daria origem a interpretações distintas entre escravizados e livres pobres (brancos ou não), preocupando as classes dominantes.4 Como escreveu um francês anônimo em 1822, escaldado pela Revolução Haitiana, "se se continua a falar dos direitos dos homens, de igualdade, terminar-se-á por pronunciar a palavra fatal: liberdade, palavra terrível e que tem muito mais força num país de escravos do que em qualquer outra parte".5

    A independência resolveu relativamente rápido a problemática do autogoverno, pois a autonomia formal do país jamais foi novamente ameaçada, mas apenas deu início à questão muito mais crucial sobre quem deveria governar, com a qual nos debatemos até hoje.6 Como a Convenção Constitucional norte-americana de 1787, a Assembleia Constituinte do Brasil em 1823 não era representativa da população que dizia representar, sendo composta quase que unicamente por brancos (o baiano Francisco Montezuma, pardo, era uma das raras exceções) e ricos. Em uma época em que o tráfico transatlântico de africanos continuava a pleno vapor (cerca de 90 mil foram desembarcados aqui apenas no biênio 1822-1823), os deputados eram também escravocratas.

    Mesmo assim, esses homens precisaram discutir quem seriam os cidadãos do novo Estado: se a exclusão das mulheres nem sequer foi posta em pauta, o que fazer com negros e indígenas foi um ponto de muita polêmica. O baiano Francisco Carneiro de Campos foi explícito quanto ao caráter excludente da cidadania na nova nação: "os escravos crioulos, os indígenas, etc. [...] não entram no pacto social: vivem no meio da sociedade civil, mas rigorosamente não são partes integrantes dela, e os indígenas nos bosques nem nela vivem. [... Eles] não têm direitos se não os de mera proteção"7- e esta, como a violência do cativeiro e da expropriação deixava claro, era muito mais formal que efetiva.

    Alguns deputados como o diácono José Martiniano de Alencar, veterano de Revolução de 1817 em Pernambuco e mais progressista que seu filho romancista - o qual defenderia a escravidão até a morte - admitiam que a extensão da cidadania a todos os homens era a atitude correta. Entretanto, a necessidade de preservar a ordem social, defender a propriedade privada e garantir as rendas do Estado impediam que essa medida fosse tomada em um país escravista.8 A preocupação do intendente de polícia do Rio de Janeiro em reprimir papéis incendiários que circulavam em ajuntamentos de negros sugere a amplitude da disseminação desses debates em 1822-24,9 mas a força das estruturas políticas oligárquicas impedia que demandas pela ampliação da participação política alcançassem as estruturas institucionais em formação.

    Ao final, os deputados decidiram incluir os africanos libertos como cidadãos e seu projeto de Constituição previa que o Legislativo deveria tomar medidas para a "emancipação lenta dos negros",10 porém a dissolução da Assembleia Constituinte por D. Pedro e a outorga de uma Constituição escrita pelos elementos mais conservadores retiraram até essas pequenas concessões. Cidadãos seriam apenas os homens livres nascidos no Brasil ou europeus naturalizados, excluindo-se os povos originários e africanos, entendidos como "bárbaros". Quanto à escravidão, nenhuma palavra: ela foi naturalizada para ser mais bem preservada.11

    Mais do que desânimo ou conformismo, o que esse passado nos sugere é que múltiplos caminhos são vislumbrados em todas as encruzilhadas históricas. Em 1823, como em 1787 nos Estados Unidos, alguns membros da elite vislumbraram uma lenta extinção da escravidão, mas a demanda internacional por algodão e café além da consolidação de poderosas classes senhoriais se encarregariam de enterrar essas aspirações. Que tais ideias tenham sido aventadas, inclusive entre setores populares, sugere que outros mundos eram possíveis.

    Entretanto, sonhar não é o suficiente para mudar. Apesar das rebeliões da década de 1830, a escravidão só foi extinta 65 anos depois da Constituinte, após o isolamento do Brasil como último país escravista das Américas e da ascensão de novas elites menos dependentes do cativeiro, bem como de um forte movimento abolicionista. O progresso não foi obtido graças a burocratas ilustrados ou governantes beneméritos, mas da ação social que transformou possibilidades abertas por mudanças estruturais em realidade.

    A luta pela liberdade e pela cidadania - o direito de ter direitos12- não se encerrou com sua conquista formal em 1888, sequer com a Constituição que, promulgada cem anos depois, finalmente transformou o Brasil em uma democracia. A persistência de múltiplas desigualdades (raciais, econômicas e de gênero) e a força que o reacionarismo demonstrou sempre que se viu ameaçado por reivindicações subalternas, por modestas que fossem - como nas décadas de 1830, 1890, 1960 e 2010 - demonstram que há muito por fazer.

    Assim, o bicentenário da independência não deveria servir de desculpa para nacionalismos rasos que comemorem os de sempre - homens, brancos, ricos e poderosos. O governo federal não fará nada diferente, agora que se lembrou da existência da efeméride. Portanto, cabe à sociedade a tarefa de recuperar os fracassos nacionais, mas principalmente os esforços para saná-los, construindo um passado prático que aponte para onde queremos chegar.

    Não se trata, evidentemente, de uma história panfletária: a simplicidade nunca reflete a realidade, de modo que dicotomias e maniqueísmos são péssimos guias para a ação. Mesmo assim, o significado que atribuímos ao passado é inevitavelmente político: 1822 por 1822 interessa apenas aos antiquários, enquanto o bicentenário precisa ser relevante para nós, brasileiras e brasileiros de 2022. Lembremos não só naqueles que perpetuaram nossas iniquidades, mas também daqueles que as combateram, tantas vezes esquecidos e invisibilizados. Que a reflexão sobre 200 anos de lutas, com muitas derrotas - mas também algumas vitórias - nos inspire para o embate decisivo na eleição que se avizinha, e para os muitos que se seguirão.

    Assim, o bicentenário da independência não deveria servir de desculpa para nacionalismos rasos que comemorem os de sempre - homens, brancos, ricos e poderosos.